A Vida Compartilhada Em Uma Admirável Órbita Fechada

Aviso: contém spoilers sobre A Longa Viagem A Um Pequeno Planeta Hostil.

A Vida Compartilhada Em Uma Admirável Órbita Fechada, escrito por Becky Chambers, é a continuação do romance A Longa Viagem A Um Pequeno Planeta Hostil. Enquanto que o primeiro livro da série era uma narrativa mais épica, temos na segunda obra um romance delicado e emocionante sobre amizade, família e propósito.

Ao final do primeiro livro, a Inteligência Artificial da nave Andarilha, Lovelace, é salva por uma manobra ilegal, sendo posta em um kit, um corpo sintético que age como seu suporte. No segundo da série, acompanhamos então a IA – que decide se chamar de Sidra, e não Lovelace – enquanto ela tenta se adaptar a viver sob o disfarce humano, restringida por um corpo e não mais uma nave.

Capa do livro

A história também é protagonizada por Sálvia, a técnica mecânica responsável pelo resgate da então Lovelace.

A narrativa entrecorta-se. Temos o ponto de vista de Sidra, lidando com as consequências de uma escolha que não fizera, pois suas memórias foram deletadas durante a transferência do núcleo da nave para o seu kit, de maneira que não era a mesma Lovelace por trás da decisão da transferência.

Por esta razão, Sidra é um personagem cativante e, apesar de ser uma IA, suas questões são bastante humanas. Ela não teve nenhuma escolha sobre existir, e nem pôde escolher suas circunstâncias – lhe restou apenas lidar com elas da melhor maneira possível, e este entrave configura seu conflito durante a obra.

Temos ainda o ponto de vista de Sálvia, com seus conflitos internos ao lidar com a questão delicada da consciência em inteligências artificiais, artifatos extremamente restritos e que sob hipótese alguma deveriam ser instalados em corpos sintéticos no universo onde a narrativa se desenrola. Aos poucos, aprendemos o porquê de seu afeto e cuidado com Sidra.

Dessa forma, o romance tece uma teia cuidadosa, elucidando os mistérios e respondendo as perguntas sem pressa, em um ritmo dosado.

O ponto forte do romance é, de fato, seus personagens. O aspecto sentimental da obra não funcionaria sem personagens interessantes, cujas questões cativam e emocionam o leitor; não só as protagonistas, mas também os dois personagens secundários mais proeminentes. Azul, o parceiro de Sálvia – com sua própria história para contar – e Tak, um amigo leal que Sidra faz ao longo do caminho.

Um aspecto bastante interessante dessa obra é o foco nas relações familiares e de amizade. Enquanto que Em Uma Longa Viagem A Um Planeta Hostil, relações românticas são mais abordadas (três palavras: sexo lésbico interespécie, algo que não criticamos neste estabelecimento), respondendo algumas das perguntas que os leitores mais curiosos poderiam ter, A Vida Compartilhada Em Uma Admirável Órbita Fechada foca muito mais na força e intimidade de relacionamentos e sentimentos platônicos.

A parceria estável entre Azul e Sálvia, inclusive, é um dos elementos mais fascinantes. Becky Chambers não se constrange em abordar sexo, nem mesmo nessa segunda história onde o romance fica em segundo plano, entretanto fica ambíguo no texto qual a natureza do relacionamento íntimo entre esses dois personagens.

Não é necessariamente romântico – afinal, nenhum dos participantes do relacionamento cresceu em contato com esse conceito – e sexual, e fica à gosto do freguês se é ou não é. Narrativas que explorem alternativas além do relacionamento romântico monogâmico heterossexual sempre terão um espaço especial no meu coração.

Da mesma maneira, a amizade entre Sidra e Tak poderia ter ido nessa direção, tirando a parte do heterossexual. E ainda bem que não foi.

Em suma, A Vida Compartilhada Em Uma Admirável Órbita Fechada é sobre isso mesmo que o título está falando: sobre a vida, e sobre como ela é melhor quando estamos acompanhados, seja da maneira que for. É uma leitura envolvente, suave, e eu estou contando as horas para o lançamento do terceiro livro da série.

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