“E os namoradinhos?” – Literatura Infanto-Juvenil e a Heteromononormatividade

Acho que de todas as palavras do título, “heteromononormatividade” é a que mais carece de explicação. Heteronormatividade é um termo mais conhecido, cuja definição é o ato de assumir que todas as pessoas são hétero, e que hétero é o normal, o padrão (ser comum e ser normal são dois conceitos distintos: todas as orientações sexuais são normais, mas a heterossexualidade, aparentemente, é a mais comum). Coloquei o mono aí no meio para adicionar mais um termo na definição: o ato de assumir que todas as pessoas são hétero e monogâmicas, e este é, portanto, o normal.

Pronto, agora posso começar o post. Um pouco off-topic, é verdade, mas surgiu da leitura de três livros de ficção especulativa, então… Aqui vai.

Mês passado tive o prazer de ter dinheiro sobrando para comprar quatro livros, três deles voltados para um público mais jovem. A Dobra no Tempo, livro que foi adaptado para filme pela Disney, escrito por Madeline L’Engle, Chronos: Viajantes no Tempo, escrito por Rysa Walker, e The Girl from Everywhere, autorado por Heidi Heilig. Li os dois primeiros, comecei a ler o terceiro e já vi de longe a repetição de um padrão (para além do tema viagem no tempo rs).

Acho maravilhoso ler histórias protagonizadas e escritas por mulheres, se não deu para notar ainda, mas eu tenho um grande problema com uma boa parte da literatura infanto-juvenil mais popular, que é a onipresença de subenredos românticos heterossexuais. Ainda mais quando a protagonista é do gênero feminino, pois o subenredo ganha uma presença e importância muito maior.

Sério, gente. Vamos parar.

Falando de maneira geral, sem especificar gênero, é um enorme desserviço para leitores jovens não verem representatividade LGBT. Primeiro porque, ao contrário do que uma boa parte das obras dá a entender, nem todo mundo é hétero, e a literatura infanto-juvenil tem aspecto altamente formativo no sentido de delinear o desenvolvimento e a maturação dos personagens – o que, então, torna-se referência para quem está lendo.

Nesse sentido, a heteronormatividade constante nessas histórias é muito tóxica. Não só crianças e adolescentes LGB permanecem na ignorância da possibilidade de ser outra coisa senão hétero, como os jovens de maneira geral ficam com a ideia de que ser LGB é algo “esquisito”, e, por consequência, errado.

Invoco aqui a J.K. Rowling. Imagina ler uma história com 100+ personagens e o único personagem gay dela se apaixonou por um vilão, e passou a vida no celibato. E imagina ser um adolescente contemporâneo, onde uma das obras mais conhecidas com um garoto LGB é um “romance” com um adulto (*cof* Call Me By Your Name *cof*).

É aí também que entra a parte da mononormatividade. Detesto quebrar a bolha de vocês, mas nem todo mundo é monogâmico. Para além da questão das diversas formas de não-monogamia quase nunca serem abordadas em lugar algum, quando estamos falando de mídia voltada para crianças e adolescentes, o problema se aprofunda por várias razões.

Já de início, a impressão é que: 1) o desenvolvimento da sexualidade durante a adolescência e infância irá envolver uma segunda pessoa (quando esse pode e às vezes deve ser um processo interno) 2) essa segunda pessoa vai ser do gênero oposto 3) o envolvimento com essa segunda pessoa será romântico e deve culminar (ou já deve estar) em um relacionamento monogâmico e duradouro, se possível até que a morte os separe.

Sim, caros autores, 11 em cada 10 casais que se formam durante a juventude duram para sempre.

O terceiro ponto do parágrafo acima é o que me preocupa mais, porque mesmo para quem é hétero e monogâmico, a probabilidade maior é de não ser uma boa ideia se envolver em um relacionamento sério durante a adolescência (e até mesmo fim da infância), e/ou achar que a manutenção desse relacionamento para a vida é a coisa mais importante. Relacionamentos terminam, pessoas se desenvolvem de maneira diferente, e pautar esse desenvolvimento em função de um relacionamento com outro alguém, em especial tão cedo, é uma aposta perigosa.

Ter esses adolescentes se envolvendo e permanecendo nesses relacionamentos a vida toda para ficar uma história “bonitinha” (*cof* Harry Potter *cof*), reforça muito a ideia de que relacionamentos devem ser para sempre uma vez iniciados, mas isso é algo muito fácil para personagens fictícios. Na vida real, o conceito não se traduz muito bem, em especial para as meninas.

Sem falar que, tudo bem experimentar e preferir fazer isso em um ambiente livre de expectativas como “vamos ter que entrar em um relacionamento sério PARA A ETERNIDADE porque transamos/queremos transar”, por exemplo.

Isso tudo passa a ideia de que o certo, o bonito, é ter só um parceiro, assim como encontrar esse parceiro na adolescência ou infância; para as meninas, a mensagem extra é que se relacionar com várias pessoas, ou casualmente, ou casualmente com várias pessoas, é algo digno de julgamento, pois a “pureza” e inocência são características atraentes.

Nem comecei a falar das namoradinhas…

Outra ramificação, retornando a um ponto dito acima, é a noção de que se precisa estar em um relacionamento ou envolvido com alguém, por que toda história tem um subenredo romântico, certo? E uma boa parte do processo de ser tornar adulto e amadurecer é se apaixonar e encontrar a metade da laranja, né? Só que não. O processo de se tornar adulto e amadurecer é se conhecer, aprender a lidar consigo mesmo e com os outros, e isso pode acontecer de formas variadas. Não é necessário se envolver romanticamente ou sexualmente com alguém.

Tudo bem não ter certeza de nada e decidir esperar até a idade adulta, ou decidir tentar de tudo um pouco. Tudo bem decidir ser poliamoroso ou passar a vida sem se apaixonar e preferir amizades. Tudo bem sentir atração sexual por todos os gêneros, ou por nenhum.

Em suma, o caminho e o destino são diferentes para cada um. Não é bem a mensagem que uma representação tão universalmente uniforme da maturação afetiva e sexual passa, porém. Como já expliquei em outro post, ninguém é obrigado, mas seria bem legal ver mais autores de literatura infanto-juvenil apresentando outras histórias de amadurecimento.

Fontes das imagens utilizadas:

Camisa infantil

Meme 1

A imagem da Mônica achei em tanto canto que eu nem qual é a fonte real rs.

Meme 2 (da página RLi da Depressão)

Nota da autora: Não discuti a questão de transsexualidade, interssexualidade e gêneros não-binários porque sou cis e tenho pouco conhecimento de causa.

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