O Mito da Questão Universal

Luiz Antônio de Assis Brasil, em seu livro “Escrever Ficção: Um Manual de Criação Literária”, argumenta que, quanto mais “universais” forem os conflitos do personagem principal, mais apelo a história terá para prospectivos leitores.

Não foi a primeira vez que vi essa dica em relação a construção de personagens e conflitos presentes na narrativa, e quanto mais eu penso acerca disso, mais eu acho que o conceito de “questão universal” ou “conflito universal” ou algo que o valha é falho e é utilizado para reforçar o androcentrismo e o ponto de vista branco na literatura.

Eu digo isso por causa da minha experiência enquanto leitora negra e bissexual, pois quando me indicavam livros que falavam sobre as grandes questões da humanidade, me indicavam livros escritos por homens brancos cishétero (mulheres brancas cishétero, às vezes), protagonizados por homens brancos (mulheres brancas cishétero, às vezes). Já discorri sobre esse tópico várias vezes aqui nesse site (aqui, por exemplo), então não vou me alongar, mas o fato é que eu não enxerguei nada de universal nesses livros e essas discussões que eles apresentam.

Enquanto escritora (e eu não deixo de ser negra e bissexual para escrever), quando era mais inexperiente do que sou hoje, me censurava de colocar personagens parecidos comigo ou discutir problemas meus nas minhas narrativas por não serem “universais” o suficiente. E esse pensamento não surgiu do nada dentro da minha cabeça.

Nas prateleiras, sites de venda de livros, de divulgação literária e de crítica, é comum surgir os termos “literatura feminina”, “literatura negra”, “literatura LGBT+”.  Ou seja, há uma separação entre a literatura “geral” e esses “tipos diferenciados” de literatura, que discutem questões tão a parte das questões humanas “normais” que precisam de nichos próprios.

O que quero dizer é que essa compartimentalização de ponto de vista nunca se aplica ao ponto de vista hegemônico, branco, cishétero, magro, sem deficiências, etc, etc, etc, que, assim como meu ponto de vista de mulher negra e bissexual, é um ponto de vista particular. Sentimentos humanos como perda, amizade, amor, saudade, todos eles são coloridos pelo nosso próprio contexto e isso acaba na página, mesmo que o autor esteja morto, metaforicamente falando. Roland Barthes que me perdoe.

As perdas de um homem branco são diferentes das minhas, assim como as minhas perdas são diferentes das de uma mulher indígena trans, mas só as do homem branco são comumente consideradas “universais”, e as outras não, sendo que nenhuma experiência, nenhuma perda, o é, de fato.

Literatura pode ser espelho, entretanto essa não é sua única função. Por meio da palavra escrita podemos também conhecer realidades que não a nossa (uma verdade tão universal quanto possível para literatura especulativa), e nos conectar com elas mesmo assim. A palavra é espelho e deveria ser elo.

Esse elo, no entanto, está longe de ser uma via de mão-dupla, porque enquanto eu sou culturalmente pressionada a me conectar com os conflitos de pessoas e personagens brancos, o oposto não é bem verdade, porque minhas questões não são “universais”. E não são, de fato, mas nenhuma é, portanto qual é o problema de um leitor branco e cishétero ler sobre personagens como eu? Sobre questões como as minhas? Por que eu, enquanto escritora, teria que fazer minha escrita e conflitos palatáveis a esse tipo de leitor?

No meu papel, penso eu que minha tarefa é de esticar bem a mão e, por meio das minhas palavras, permitir que o leitor conheça os meus personagens e seus conflitos, mesmo que talvez esses conflitos sejam muito diferentes dos do leitor.

Mas daí também parte do leitor a iniciativa de me acompanhar na jornada e querer conhecer o que há além do umbigo dele, o que, a tirar pela falta de autores negros nos espaços literários, nem sempre acontece.

Imagem do header por Tasha Kamrowski do Pexels

2 Comments

  1. Aí, obrigada pelo texto. As vezes saio pelo wp catando sites e posts sobre escrita feminina, porque é isso que me interessa, e as vezes sou presenteada com pérolas como seu texto… 💙

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