Ninguém Nasce Herói – O Fantástico da Realidade Brasileira

Apesar do título desse post, Ninguém Nasce Herói é um romance de ficção contemporânea, mais uma distopia que qualquer outra coisa, ambientado em São Paulo de um futuro próximo (que você pode adquirir aqui). Uma jogada esperta da premissa faz com que a história adquira elementos fantásticos presentes em grande parte da cultura pop, sem transformar a obra em uma fantasia urbana ou ficção científica. Explico-me:

O protagonista de Ninguém Nasce Herói, Chuvisco, é um jovem tradutor recém-formado, e uma das suas características mais proeminentes são as suas “catarses criativas”. Apesar de não ter diagnóstico claro, Chuvisco sem dúvida é neuroatípico em algum grau: a sua imaginação fértil, influenciada pelos quadrinhos e seus sentimentos, sangra para a realidade. E, na narrativa, vemos as catarses pelos seus olhos.

A ascensão de uma ditadura no Brasil fragiliza o controle do protagonista sobre sua saúde mental, ao ver-se diante de situações cada vez mais extremas. Em certos momentos, o próprio Chuvisco não consegue discernir a realidade de fora de sua realidade interna, e, por consequência, o leitor também não. A leitura é um exercício interessante de tracejar a linha entre o que existe apenas na mente do protagonista, e o que há, fisicamente, ao seu redor.

Apesar da oportunidade, a narrativa não aborda de fato capacitismo e psicofobia de maneira mais aprofundada. As questões que movem o enredo são sobre liberdade política, como ela é cerceada de maneira mais sutil por meio de fundamentalismo religioso, como algumas pessoas são mais atingidas que outras, e, principalmente, quão longe deve-se ir para tomar seus direitos de volta.

Capa da obra

E são apenas isso: questões. O romance propõe situações e cabe ao leitor chegar a uma conclusão por si próprio.

Tudo isso comunicado em uma escrita jovem e contemporânea, na maioria das vezes verossímil. A maior parte dos diálogos ocorre entre Chuvisco e seu grupo de amigos, e as interações entre eles dentro da história são um reflexo fiel da amizade entre jovens adultos na vida real (embora o nível de proximidade entre eles esteja bem longe do ortodoxo).

Falando dos amigos de Chuvisco, eles são outro ponto forte da história. Eric Novello construiu vários personagens diversos para popular o seu romance, e é dessa forma que discute sobre como uma ditadura é mais difícil para uns – as pessoas negras, as pessoas LGBT, pobres, mulheres.

O que mais me impressionou foi Júnior, o interesse romântico da história, pois ele é um homem transgênero. Eric consegue andar na linha tênue entre falar sobre transfobia e dominar a narrativa de pessoas trans.

Ou pelo menos é isso que pensei (considerando que eu sou cis, portanto minha opinião parte de uma posição de privilégio).

Para além disso, a história intercala momentos leves com passagens chocantes sobre a realidade de um regime ditatorial. Há bastante sumiços, mortes, e vidas despedaçadas mesmo após o fim do regime. Para quem chora fácil, melhor deixar de lado já o lencinho.

Dito tudo isto, minhas ressalvas em relação ao texto são mínimas. Eric tem um ponto a fazer com seu romance, e, por vezes, os personagens se tornam muito descaradamente fantoches para esses pontos, por isso escrevi lá em cima que a escrita é verossímil, mas só na maioria das vezes. Porém, as ocorrências disso são raras dentro do texto.  

Mesmo com as devidas considerações, Ninguém Nasce Herói é um romance contemporâneo brasileiro que merece cinco estrelas.

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