Páginas de Sombra – Um Histórico do Horror no Brasil

Páginas de Sombra: Contos Fantásticos Brasileiros é uma antologia de contos publicada em 2003 pela Casa da Palavra, selo da Editora Leya, e foi organizada por Bráulio Tavares (disponível para compra aqui). A produção de literatura fantástica no Brasil não é tão recente quanto se pensa – o primeiro romance fantástico do Brasil, A Rainha do Ignoto, o qual eu nunca mencionei em lugar nenhum antes, teve sua primeira edição no século XIX.

Não obstante, encontrar literatura fantástica que não seja contemporânea pode ser um desafio para quem procura entender melhor a trajetória desse gênero na literatura nacional. Bráulio Tavares facilitou bastante esse trabalho com Páginas de Sombra, não só compilando contos, mas também fornecendo um breve histórico sobre os autores. Alguns são mais conhecidos, como Machado de Assis e Lygia Fagundes Telles; ainda assim, devo confessar não ter ouvido falar da maioria deles.

Essa janela do tempo não mostra apenas pairagens bonitas. Se o racismo continua vivo e bem na fantasia contemporânea, ele existe com força total em alguns contos de Páginas de Sombra. Não é uma antologia para se ler sem os óculos da leitura crítica e a pistola de raio problematizador na cintura.

Por esta razão, debati se deveria ou não resenhar a obra no site (reservado apenas para resenhas positivas). Entretanto, relembrar o histórico do gênero é importante para compreendê-lo da forma que é hoje, e da mesma forma que existem contos ao nível lovecraftiano de racismo e machismo, existem contos que adicionaram um bom peso à minha bagagem literária e são estes os mencionados nesse post.

Flor, telefone, moça, escrito por Carlos Drummond de Andrade, gela a espinha com o terror da vida comum: nele, uma moça arranca a flor de um cemitério e deve ligar com ligações misteriosas aparentemente vindas do além.

A gargalhada, por Orígenes Lessa, traz fortes elementos nonsense para o horror. Uma gargalhada reverbera pelos sistemas de comunicação, ruas, e, por fim, pelo mundo inteiro, aterrorizando e enlouquecendo as pessoas. O desconforto da narrativa é ampliado justamente por não fazer muito sentido.

Academia de Sião, o conto de Machado de Assis, é o que mais me impressionou ao, de maneira fantástica, abordar questões de identidade de gênero e transexualidade mesclados à fantasia de um cenário altamente hipotético (e falando no homem, vou deixar aqui o link da minha resenha da primeira publicação da Plutão Livros, um conto de ficção científica do Machado).

Confesso que, quando vi na capa Lygia Fagundes Telles, imaginei que o conto dela seria Venha ver o pôr-do-sol, mas, não, o conto dela a aparecer na antologia é As Formigas. Tal como A gargalhada, uma boa parte do terror da narrativa vem da sua falta de sentido, e a proximidade com o cotidiano traz a outra parte. Quem nunca encontrou insetos ao alugar um apartamento barato?

O último conto digno de nota é O caminho de poço verde, escrito por Rubens Figueiredo. Nele, lemos sobre uma protagonista jovem, viajando sozinha em busca de um lugar do qual ninguém ouvira falar, enquanto é acometida por uma doença misteriosa. O ponto mais digno de nota é o cenário: a história se passa em um interior serrano do Brasil, com todos seus trejeitos, mitos e causos. Páginas de Sombra na verdade possui com dezesseis contos, e um histórico no prefácio, e, apesar de eu ter fortes ressalvas com alguns contos, só posso considerar essa uma antologia importante por manter viva a memória da fantasia e do horror no Brasil – o bom e o ruim.

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