Sobre o Barco Metafórico da Fantasia Nacional

O cenário da literatura fantástica é o mar, as editoras são as lanchas, e os autores são como os jet-skis…

Não, pera.

Bom, o meme tem a ver.  

Já estive inserida no meio tempo o suficiente para ouvir diversas vezes a seguinte frase: “estamos todos no mesmo barco”. O barco, no caso, é o cenário da litfan nacional em seu termo mais abrangente, compreendendo os gêneros da fantasia, ficção científica e horror, e “todos” são os autores e editores e revisores e afins.

Este texto é para dizer que: não, não estamos.

A metáfora é falha por fazer uma confusão muito séria. O fato de estarmos todos (me incluo, como autora e divulgadora) inseridos no mesmo cenário, não significa de modo algum que passamos as mesmas dificuldades, logo o “estar no mesmo barco”.

Prefiro pensar no cenário editorial da litfan como um oceano. O oceano pode ser maravilhoso se você estiver passeando em um transatlântico, onde sua única preocupação é não estragar obras de arte quando for abrir a garrafa de champanhe. Estar no meio do alto mar só com uma boia debaixo do braço é, porém, no mínimo desconfortável.

Com isso, quero dizer que os espaços desse cenário não são igualmente seguros para todos. Como mulher e pessoa negra, eu já fui forçada a me retirar de certos lugares por questão de segurança. O machismo e o racismo existem e vão muito bem obrigada dentro deste oceano literário. Nele, com certeza não sou passageira de um iate. Imagino que seja assim – e pior – para muitas outras pessoas.

Se a fantasia nacional fosse mesmo um barco

Fora a questão de segurança básica, existe a questão de ser lido e percebido dentro desse espaço. O cenário da litfan nasceu branco, de classe média, e sudestino/sulista. Os leitores mais assíduos, os autores, e principalmente os editores tendem a seguir esse perfil. Conseguir leitores ou freelas nessas circunstâncias é bem mais complicado para quem não é tão palatável ao público mais cativo.

Seguindo a metáfora, existe gente navegando bem longe da costa, buscando leitores em outros continentes e ilhas, trabalho bem mais árduo. Se fosse fácil, teria mais gente fazendo. Porém, para certos navegantes, ou é isso ou morrer afogado, pois, como dito acima, o público habitual tem gostos muito específicos.

Outra consideração que a teoria do um só barco desconsidera é o fato de nem todo mundo navega para o mesmo lugar. Alguns autores navegam para as favelas, para a periferia, para as diversas regiões do Brasil, enquanto outros navegam para o mercado editorial anglófono.  

Um modo mais adequado de enxergar a situação é considerar que cada navegante tem seu barquinho. Às vezes, o barquinho é só uma porta de madeira. Às vezes, é uma lancha luxuosa, ou até mesmo um iate. Estamos no mesmo cenário, mas o cenário é bem diferente para cada um de nós pelas nossas circunstâncias pessoais, e o destino – ou seja, o objetivo – de cada um também o é.

sacaram a piada?

Agora, chegamos numa parte bem interessante desta multifacetada metáfora. Não deve ser novidade para ninguém que no Brasil existem problemas estruturais muito sérios, além de nosso controle, que facilitam o “afogamento” de autores em posições mais vulneráveis. O problema, porém, não para por aí.

Se o cenário da liftan é machista, racista, etc, etc, etc (e de fato o é), isso não surge do nada. Isso surge das pessoas que participam dele. Não raro vejo a questão ser discutida como se tais problemas surgissem do mais completo vácuo. Nada surge do vácuo.

Colocando de outra forma, tem gente empurrando o coleguinha para fora do barco. Ou, então, atropelando os barquinhos dos outros. Embora os barcos aqui sejam metafísicos, os danos são dolorosamente reais.

Em última instância, a metáfora do mesmo barco me parece insuficiente para explicitar todas as problemáticas do cenário da literatura fantástica nacional. Seria legal se fossemos um grupo unido e organizado em torno de um ideal comum…

Mas não somos.

Em parte, porque não há um ideal comum. O ideal de um autor que quer fazer nome na “gringa” não é o mesmo de um autor regionalista, fazer o quê? A outra parte, bem mais desagradável, tem a ver com o fato de uma união não ser possível. Falando por mim: não tenho lá muita vontade de me unir a quem facilita meu naufrágio.

Você, leitor, teria?

E não é porque cada um está no seu barco que navegamos sós. Existem navegantes ajudando outros navegantes, existem verdadeiras frotas dentro deste oceano metafórico. Só não podemos nos enganar e pensar que todo mundo ajuda todo mundo e todo mundo navega para o mesmo lugar.

Aliás, quanto mais cedo percebermos isso, mais cedo surgirá esse cruzeiro utópico da literatura fantástica nacional.

Estou no aguardo.

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