O Titã

A floresta era um lugar estranho. Os adultos amedrontavam suas crianças com histórias para dormir, dizendo-lhes que, ao centro, ficava o local de repouso de um titã. Sempre descansou ali, desde antes da ocupação do vale, e destruía a todos que perturbassem a tranquilidade do lugar. Ninguém viveria o suficiente para vê-lo indo embora.

O tempo passava, as crianças cresciam, as cantigas de ninar sobre o Titã se tornavam baboseiras de progenitores supersticiosos. Em grupo, desobedeciam ordens e brincavam de se esconder na floresta, indo mais fundo a cada brincadeira.  

Enquanto pedaço de mato, o local tinha mais atrativos além da proibição parental: baratas com seis asas, sapos sem olho, flores com malformações mais vistosas que as de costume.

Em grupo, as crianças adentraram, adentraram, adentraram… E se perderam. Não havia trilhas no chão. Ninguém passava por ali. Ninguém vivia no vale além delas, de seus pais e avós e parentes próximos, quem dirá caminhando a esmo onde o Titã dormia, eterno.

As crianças caminharam por horas. Começaram a brincar muito cedo no dia, e a luz do sol ainda iluminava o caminho quando a floresta começou a morrer. As plantas ficavam menores, mais ressequidas, as malformações mais grotescas, bizarras, impossíveis. O solo fértil tornou-se árido. O próprio ar ia perdendo a vitalidade conforme a caminhada seguia, mata adentro.

A floresta acabou. Em seu lugar, espigões negros surgiam do chão morto, tão altos quanto árvores. Os espigões eram ofensivos aos olhos, hostis. Nenhum zumbido de inseto ou canto de pássaro perturbava o silêncio sepulcral. As crianças trocaram olhares entre si. Deveriam voltar ou continuar? Tudo naquele lugar as diziam para voltar.

Mas seguiram em frente, por entre os espigões, pela adrenalina de estar onde não deveriam. Seguiram, seguiram, e encontraram o fim dos espigões, enquanto o sol ia se pondo. Os espigões formavam um círculo ao redor de uma construção baixa, do tamanho de um barraco.

Em frente ao barraco, um pedaço de pedra negra se erguia do solo. O topo fora arrancado, ou caiu, e jazia próximo. O mais velho aproximou-se, viu marcações apagadas pelo tempo.

Secretamente medroso, sugeriu um desafio. Alguém deveria entrar no barraco e ver se ele era seguro para passarem a noite. De manhã, voltariam para casa. Como ninguém se pronunciou, o mais velho escolheu o único entre eles que tinha sete dedos nos pés, quando a maioria tinha quatro ou seis; a lógica é que poderia correr mais rápido para voltar caso algo fosse, de fato, perigoso.

A mente infantil não conseguiu conceber um contra-argumento a altura. O Sete Dedos se viu forçado a engolir o medo quando as outras crianças, solenes, abriram a porta pesada do barraco. O tempo, destruidor de tudo, se encarregara de destruir a tranca.

Além da porta, só havia uma escada para dentro da terra.

Cuidado para o Titã não te pegar, alertou o mais velho para Sete Dedos, em tom jocoso. O garoto desceu, degrau por degrau. Ao final da escada, existia uma sala, coberta de poeira, e uma placa similar em material a que havia do lado de fora.

Sete Dedos passou a mão para retirar a sujeira, e as marcações eram em várias línguas. Línguas mortas, ele soube ao vê-las.

Esse lugar é uma mensagem. E parte de um sistema de mensagens. Preste atenção!

O menino contornou a placa. Atrás dela, mais uma escada, dessa vez ladeada por pequenas lamparinas, como velas, mas sem fogo algum. Lembrou-se das histórias para dormir de sua mãe, sobre seres que podiam sobrevoar os mares e controlar o clima.

Enviar essa mensagem era importante para nós. Nós nos consideramos uma cultura poderosa.

Continuou a descer, igualmente repelido e atraído pelo lugar.

Esse lugar não é um local de honra. Nenhum feito é celebrado aqui. Nada aqui é valioso.

O escuro e o silêncio assustavam o garoto, mas não menos que a promessa de uma sova caso voltasse com medo.

O que está aqui é perigoso e repulsivo para nós. Essa é uma mensagem sobre perigo.

Inscrições começaram a aparecer nas paredes, em várias línguas, símbolos e palavras que o menino jamais poderia reconhecer.

O perigo está localizado em um ponto. O perigo aumenta em direção a um centro. O centro do perigo está aqui. De um tamanho e forma particulares, debaixo do solo.

Uma pontada de dor ferroou a têmpora de Sete Dedos. O estômago começou a embrulhar.

O perigo ainda está presente, no seu tempo, como estava presente no nosso.

Uma mistura particular de dor, confusão, medo e curiosidade fizeram-no continuar, sempre para frente, sempre para baixo.

O perigo é físico, e pode matar.

O fim da escada era um salão, bem mais espaçoso, o teto tão alto que Sete Dedos mal conseguia enxergá-lo na meia-luz causada pelas velas embutidas nas paredes. Ele sentiu-se enjoado. Vomitou bile a um canto e limpou a boca com as costas da mão.

O perigo é uma forma de emanação de energia.

O salão era cheio de portas. Uma delas estava estufada para fora, como algo lá de dentro a tivesse forçado. Rachaduras subiam pelas paredes como tentáculos. Sete Dedos não conseguia mais pensar direito, a cabeça inteira latejava. Queria ver. Precisava saber.

Com muito esforço, começou a se aproximar da porta quebrada. A barriga doía. Algo quente escorreu por dentro da perna do calção, mas a dor era tanta que estar sujo era um mero detalhe.

O perigo é solto apenas se você perturbar esse lugar fisicamente. Esse lugar deve ser isolado e inabitado.

Fraco, letárgico, Sete Dedos conseguiu abrir a porta por alguns centímetros. Sangue escorreu da sua orelha, indo pingar só no queixo. O corpo inteiro se enrijeceu, e ele caiu, em convulsão, incapaz de compreender a verdadeira face do Titã. Morreu antes mesmo de entender que o havia encontrado.

Diz-se que uma maldição se abateu sobre o vale depois disso. Todas as crianças do grupo morreram, e logo depois seus parentes seguiram, e quem sobrou fugiu, levando consigo histórias de um deus cujo sono não deveria ser perturbado.   

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