Sangue Na Página: Torture Porn e Representação Racial

Começo esse post com uma confissão pessoal: sou uma pessoa extremamente negativa e isso se reflete na minha escrita. Disso surge, por exemplo, minha preferência por horror e ficção científica distópica. Meus personagens sofrem bastante, coisas ruins acontecem, não tem final feliz. E como autora negra, escrevo muitos personagens negros, que não escapam da negatividade geral da minha produção literária. Depois dessas declarações, talvez seja uma surpresa para você, leitor, saber que eu tomo muito, mas muito cuidado na hora de colocar personagens negros sofrendo porque eles são negros.

Não quero que esse post seja utilizado para policiar como autores negros se representam nas páginas. Em primeiro lugar eu acho que autores negros estão livres para criar o que quiserem. Se quiserem escrever uma fantasia tolkeniana que se passa na Anglaterra e que só tem gente branca, tudo bem. Questionável, mas tudo bem. Esse texto não é bem sobre os que os autores negros podem ou não escrever; é mais uma reflexão de como certas coisas são recebidas e entendidas pelos leitores, em especial os leitores brancos.

Para quem não conhece o termo, torture porn é um nicho do horror onde há a tortura pela tortura. Da mesma forma que, no pornô, há o sexo pelo sexo, no torture porn o sofrimento dos personagens na tela não tem um sentido maior de ser, está apenas ali. O termo também deixa implícito que há um certo prazer em consumir o conteúdo, em ver o sofrimento. De modo perverso, nos sentimos bem consumindo aquilo, seja por acharmos divertido, seja por ficarmos gratos que não somos nós naquela tela sendo desmembrados com uma serra elétrica.

E o melhor amigo do personagem negro é o sofrimento. A representação racial por vezes se confunde com a representação do racismo e vemos na página (ou na telinha) não apenas a pessoa negra: vemos também o sofrimento, na maioria das vezes racializado. O personagem negro sofre, e sofre por ser negro. E esse sofrimento racializado em geral tem o objetivo de expor essa grande mazela que é o racismo contra as pessoas negras.

Mas nem sempre o sofrimento racializado vai ter propósito. Ou, perversamente, nem sempre o leitor (branco, né) vai enxergar propósito nele. E temos aí um torture porn. Se tem uma coisa que observei bastante nesses meus anos de mercado editorial, é que o leitor branco adora um torture porn com personagens negros. As pessoas brancas tendem a ter um interesse voyeurístico no sofrimento negro, em geral: caso contrário, vídeos com pessoas negras morrendo por violência policial não viralizariam, e não teria tanta gente branca querendo ser negra. Dependendo de quem vê, o sofrimento negro é interessante, tem valor de entretenimento. É bom de consumir.

Até que ponto eu colocar minhas dores na página leva a uma reflexão para quem lê? Quando passa a se tornar um espetáculo? O quanto eu me sinto obrigada a escrever coisas sofridas porque é o que “devo fazer” enquanto escritora negra? Por mais pessimista que eu seja, não suporto a ideia da minha dor virar um circo; não suporto ter a minha criação literária cerceada pela expectativa dos leitores que só se interessariam pela minha obra se eu estivesse disposta a sangrar na página.

E aí, nós enquanto leitores, editores, profissionais do livro, que tipo de obras com personagens negros nós valorizamos? Que obras nós publicamos, divulgamos, panfletamos nas redes sociais? Nós damos o devido valor a obras com personagens negros escritas por pessoas negras que não tem nada a ver com sofrimento ou dor ou morte também?

O que quero dizer aqui é que não devemos limitar a representação racial à representação do racismo, à representação das nossas dores. O autor negro não deveria ter que pagar um preço de sangue para ser lido. Ler sobre personagens negros felizes, se dando bem na vida, também conta como antirracismo, tá?  

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