A História do Sertãopunk

O sertãopunk vai completar dois anos em 2021. Confesso que, no início de tudo, achava que ele não ia para frente, que não ia ser importante registrar como ele surgiu, mas o tempo provou que eu estava errada (ainda bem). Então, por que não contar a história do sertãopunk com minhas próprias palavras?

O sertãopunk surgiu da cabeça de três autores pretos e nordestinos: Alec Silva, Alan de Sá e eu, G. G. Diniz. Nós três estávamos insatisfeitos de ver o futuro do Nordeste ser mal representado por pessoas de fora da região e não gostávamos de ver essas representações ganharem espaço. E, claro, para além de reclamar sobre o assunto, queríamos fazer melhor. Nós juntamos as cabeças e pensamos em como nós queríamos ver o futuro do Nordeste ser representado. Mas o sertãopunk não tinha nascido, não ainda. Como se constrói um movimento do zero? Não tínhamos nada, naquela época.

Antes de falar sobre outros aspectos mais práticos da criação do sertãopunk, queria explicar um pouco sobre como chegamos ao conceito. Sabíamos de algumas coisas: queríamos valorizar a estética do Nordeste como ela é, queríamos trabalhar com sustentabilidade, desenvolvimento tecnológico, e respeito aos biomas existentes da região. Também queríamos que o movimento contemplasse as diversas religiosidades e crenças do Nordeste e, por último, queríamos explorar os conflitos étnicos da região.

Daí tiramos as três influências principais do movimento. Descartamos o cyberpunk por ter uma estética americanizada; o solarpunk, por outro lado, não tem uma estética tão bem definida, e trabalha justamente com desenvolvimento tecnológico sustentável, que era o que queríamos. Escolhemos o afrofuturismo pois queríamos retratar a experiência da diáspora africana nordestina. Por último, o realismo mágico seria a influência que permitiria ao sertãopunk abordar os aspectos religiosos do Nordeste, desde as crenças católicas e religiosidades de matriz africana, até às crenças populares, tudo sob uma ótica especulativa.

Para além disso, firmamos a proposta central do movimento: trabalhar o futuro do Nordeste como uma extensão do presente, não como um fac-símile do passado. Alan de Sá quem batizou a maçaroca que inventamos de sertãopunk.

Pronta a proposta, como faríamos a ideia “pegar”?

Uma coisa decidimos desde o princípio: todo o material que define o sertãopunk estaria disponível online e seria gratuito, para qualquer pessoa poder acessar, de qualquer lugar. O motivo para isso é óbvio. Estávamos querendo criar um movimento do zero, não fazia sentido colocar a proposta atrás de um “paywall”. Por isso, o texto que propõe o sertãopunk é um artigo no Médium do Alan de Sá. Nós três pensamos no conceito, e o Alan muito habilmente transformou-o num artigo que argumenta: por que fazer o Nordeste sertãopunk?

Para a minha surpresa, a ideia começou a ganhar tração na internet. Mas esbarramos num probleminha: não tínhamos material para além da proposta em si. Surgiu o convite do Portal Aprendiz para responder a uma entrevista sobre o sertãopunk, e nós três, os criadores, pensamos: temos que publicar alguma coisa antes do artigo ir ao ar. Assim surgiu “O Sertão Não Virou Mar”, a primeira obra sertãopunk, que está disponível gratuitamente neste site que vos fala, e que apareceu no artigo do Portal Aprendiz, como havíamos planejado. Ela é inspirada em “Bacurau”, do Kléber Mendonça Filho: portanto se existe alguma obra de antes do sertãopunk que talvez possa ser considerada do movimento, seria esse filme.

Um agente muito importante para o estabelecimento do sertãopunk foi a Corvus Editora. O surgimento do sertãopunk iniciou a discussão da necessidade de ter mais autores nordestinos publicados no cenário de ficção especulativa. Nasceu a coleção Carcarás, e eu fui convidada para abrir a coleção. Decidi escrever uma continuação de “O Sertão Não Virou Mar”, e escrevi a minha querida “Morte Matada”. Foi na coleção Carcarás que Alec Silva publicou “A Noite Tem Mil Olhos” e mais alguns contos sertãopunk que acompanham a história de uma capelobo (leiam se quiserem descobrir sobre o que é hahaha). Alan de Sá publicou independentemente o conto “Abrakadabra”, também sertãopunk. O esforço conjunto tinha um objetivo: construir um repertório para o movimento.

Nesse meio tempo, começamos a nos organizar para publicar um e-book expandindo o conceito e apresentando outras possibilidades para o sertãopunk, que até então estava ancorado à minha produção, que é uma das milhares de interpretações possíveis para o movimento. Tínhamos que continuar a movimentar a parada e lembrar as pessoas do sertãopunk. Assim surgiu “Sertãopunk: Histórias Do Nordeste de Amanhã”. O título é do Alec Silva, que gentilmente arranjou um capista para a obra (obrigada, Samuel!). Também foi o Alec que editou a coletânea e utilizou seus conhecimentos de editor para publicá-la gratuitamente nas mais diversas plataformas (tá na Amazon, para quem quiser ler).

Outras pessoas foram comprando a ideia: Marina Teixeira, ilustradora baiana e co-fundadora do estúdio Kibo Creations, fez a primeira arte visual sertãopunk, sobre uma Salvador retro e afrofuturista. O também baiano Ian Fraser lançou uma campanha solidária no Catarse cuja recompensa era um conto sertãopunk de realismo mágico puríssimo, “O Segredo Que Vale Uma Alma”. O autor cearense Chico Milla lançou, no blog “Aladiço Literário”, uma coluna sertãopunk.

Mais recentemente, a autora americana Charlie Jane Anders escreveu um artigo na sua newsletter sobre o sertãopunk, e podemos oficialmente dizer que o sertãopunk agora é um movimento de reconhecimento internacional.

O que eu queria deixar bem claro com esse meu post é que a construção do sertãopunk teve sorte envolvida, sorte de as pessoas curtirem a ideia, mas muito do que aconteceu foi fruto do trabalho e da estratégia dos três criadores. Afinal, a própria ideia que as pessoas curtiram tanto foi resultado de muita deliberação da nossa parte. E, obviamente, falei tudo bem explicadinho para não existir mais confusões acerca de como o movimento surgiu e que obra o inaugurou.

Chegamos ao presente, e fica a pergunta: e agora? Bem, agora, queremos incentivar outras pessoas a produzir sertãopunk, afinal não se faz um movimento só com sete pessoas. Mais uma vez a Corvus abraçou a ideia e concordou em publicar uma antologia sertãopunk organizada por mim e pelo Alan de Sá. (Fiquem de olho, o edital de seleção de contos deve abrir em breve!).

E muito mais vem aí…

Vida longa ao sertãopunk!

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