Banquete De Rei

Um vampiro, se você pensar bem, é uma espécie de muriçoca. Depois que pensei isso pela primeira vez, nunca mais deixei de pensar quando cravava as presas em alguém.

Tal como uma muriçoca, a mordida de um vampiro causa mais coceira que dor, já que o veneno é anestésico. E ainda bem. Enterrei mais as presas no ombro da minha vítima da vez e ele se remexeu, mas não acordou. Eu suguei até onde achei que era sábio e o soltei. Depois, saí pelo quarto catando minhas roupas. Coloquei a carteira e o celular no bolso, deixei uma cédula em cima da mesinha de cabeceira para pagar pelo motel, e saí de fininho para a manhã que estava gloriosamente nublada.

Minha pele queimava, mas só um pouco: as nuvens cinzas como chumbo no céu não deixavam nenhum raio de sol passar diretamente, então eu podia andar tranquilo na rua enquanto tomava o rumo de casa. A vida eterna era legal, mas roubava pequenos prazeres como esse, o de andar na rua a luz do dia sem medo de pegar fogo.

E não era só o medo de pegar fogo. Quem olhasse demais para mim saberia que algo não estava certo comigo, um cadáver ambulante. Mas em Fortaleza, Ceará, eu não precisava me preocupar com isso. Não tinha ninguém para me dizer para não andar na rua de manhã, caso alguém desconfiasse de mim. Eu podia ser eu, eu podia ser livre, porque nenhum vampiro em sã consciência pisaria numa cidade tão perto da linha do Equador, quanto mais alguém vindo dos clãs mais antigos que se achavam no direito de me dizer o que fazer da minha pós-vida. Ainda bem que eles não sabiam da época de chuvas, e não era eu que ia avisar.

Caminhei sorridente do motelzinho perto da Bezerra de Meneses para a casa da minha família na Aldeota. O caminho era longo, mas minhas pernas não cansavam. Um passo atrás do outro, um passo atrás do outro, até que eu chegasse a um dos últimos casarões do bairro. O restante já tinha virado prédios e mais prédios; a minha residência ancestral era uma das últimas sobreviventes, e só porque uma casa daquele tamanho, no coração da Aldeota, valia milhões.

Sim, eu vim de família rica. Virei vampiro numa viagem de férias pela Europa, na época que para chegar na Europa você precisava pegar um barco. Acho que não preciso dizer mais.

Cheguei no portão, apertei a campainha e minha tatara-sobrinha-neta quem atendeu.

— Hermínio, onde é que tu tava?

— Com meu café-da-manhã — eu disse, deslizando entre ela e o portão de entrada para entrar dentro de casa. — Ou tu prefere que eu traga as pessoas para cá?

Ela encrespou os lábios e me seguiu para dentro.

— Um dia vão te pegar e te prender e aí tu vai ver o que é bom pra tosse.

— Me respeita que eu sou teu avô. — eu disse, num sorriso largo que mostrava minhas presas.

Fazia uns dois séculos que eu tinha vinte e dois anos. Helena, minha tatara-sobrinha-neta, tinha quarenta e dois, era mãe de família e suas duas filhas provavelmente iam seguir a tradição de me ceder um quarto quando me desse na telha de voltar para a minha cidade natal.

Entrei em casa e fui direitinho para o quarto de hóspedes, o meu quarto. Mesmo que eu não cansasse, sempre precisava ficar um pouco só depois de me alimentar, já que era um longo e extenso ritual para que isso acontecesse. Tirei os sapatos, caí na cama e puxei o celular para verificar a previsão do tempo para a semana seguinte. Era a semana do carnaval. No último carnaval de Fortaleza que eu fui, estava vivo ainda.

E segundo a Funceme, ia chover a semana toda.

Eu sei que a previsão da Funceme não era garantia de nada, mas não pude evitar um sorriso. Se o carnaval daquele ano fosse que nem os carnavais mais recentes que fui, com montes de corpos suados, seminus e alcoolizados, eu teria um banquete digno de um rei e ficaria bêbado que nem um gambá.

Ou seja…

Seria perfeito.

Digue